Excelência humana e atlética
Olhando
quer retrospectivamente quer de forma sincrónica para o conjunto sempre em
mutação que constitui isso que se designa diplomaticamente como «humanidade»
percebe-se que talvez o maior problema que, a este nível, existe é o da
definição precisa do que é propriamente a humanidade, o que é propriamente
ser-se humano, um ser humano.
Todas
as formas tribalistas antigas e contemporâneas definem o próprio do humano como
isso que obedece aos princípios míticos em torno dos quais se constitui a tribo
a que se pertence, sejam tais princípios claramente assumidos como míticos
sejam disfarçados de formas “superiores” de racionalidade.
Ora,
a humanidade tribal sempre se definiu propriamente por oposição à definição do
que é propriamente humano nas outras tribos. Tal significa que o que é mesmo
humano é o que pertence ao que o mito da minha tribo define como tal. A
definição de humanidade e de ser humano seu constituinte é, assim, um acto
cultural e apenas cultural.
Pode
ser o nazi-ariano por oposição ao restante da humanidade; pode ser o membro do
Klan norte americano, através do mesmo modo universal de distinção; pode ser o
“branco” relativamente ao “preto” ou o “preto” relativamente ao “branco”; pode
ser o rico relativamente ao pobre; o indivíduo com elevado QI relativamente ao
de baixo QI, mas cuja acção aquele explora porque não pode viver sem ela.
Todavia,
também pode ser o “saudável” relativamente ao “doente” ou o “normal”
relativamente ao “anormal”. Estas distinções, todas elas etnocêntricas, todas
elas onto-antropológica, ética e politicamente ilegítimas fundaram as relações
humanas e continuam a fundá-las, mesmo no campo macro da geopolítica e das,
assim perversas, relações internacionais entre estados, povos, nações,
instituições várias.
Sendo
este panorama etnocêntrico universal o que é, apesar das superficiais declarações
em contrário, proferidas pelos mesmos responsáveis pela existência de tais
perversidades antropológicas e político-sociais, não é de surpreender que se
estenda, também, ao campo do desporto, em que a discriminação etnocêntrica
vária ainda se encontra presente.
Uma
destas presenças consiste em tratar os desportistas que não são considerados
como aptos a competir com os ditos “normais” como desportistas de ordem
inferior, assim os tratando como se de uma tribo menor se tratasse, impassível
de conviver ao mesmo nível da tribo dos “bons”, dos privilegiados pela
natureza, dos que foram eleitos para se destacarem antropologicamente entre os
seres humanos que a si próprios se consideram como os normais, classificação
que recebe tacitamente o beneplácito das instituições nacionais e
internacionais que aceitam tal classificação, tal discriminação.
Ora,
subjacente a esta discriminação está o irracional preconceito de que os
chamados «deficientes» não são seres humanos semelhantes aos outros, apenas
diferentes, nas circunstâncias que são as suas.
Não
há qualquer razão para que, consideradas positiva e não negativamente as suas
diferenças, não possam e mesmo devam poder fazer tudo o que os outros fazem,
também segundo as suas diferenças próprias, sem que sejam considerados «menos
humanos» ou indignos de estar lado-a-lado com os demais ditos «normais».
Há
que notar que todos os seres humanos são deficientes de um modo ou de outro:
que capacidade tem um homem com dois metros e vinte de altura e cento e
cinquenta quilos de peso para ser cavaleiro de corridas de velocidade? Isso faz
dele «anormal», deficiente, menos humano por comparação com o habitual
cavaleiro com um metro e sessenta de altura e sessenta quilos de peso?
Então,
por que razão não hão-de os atletas, quaisquer, mas sobretudo os excelentes em
sua diferença, ser tratados como humanamente semelhantes em direitos e deveres
aos outros, aos ditos «normais»?
Por
que razão não haver, mas haver mesmo, competições em que uns e outros se
pudessem encontrar, não para competir humilhando-se, mas para competir
imbricando as suas diferentes formas de uma mesma humanidade?
Por
que razão certas formas de desporto não são ainda reconhecidas como olímpicas,
como, por exemplo, a natação dita «adaptada»? «Adaptada» a quê? Ou será que a
«normal» também não é adaptada ao seu nível e modo; ou é «desadaptada», talvez
«inadaptada»? Não é todo o desporto necessariamente adaptado ao que é como
desporto diferenciado?
Toda esta irracionalidade, inaceitável neste
século XXI e fruto de estruturas antropológicas arcaicas e primitivas que já
deveriam ter desaparecido, obriga a que atletas de várias modalidades
«não-normais» tenham muito mais dificuldade em procurar e manifestar a sua
excelência possível do que os proclamados «normais». Ora, tais dificuldades
implicam que os triunfos destes atletas desconsiderados tenham um mérito
relativo e absoluto muito maior do que os outros, apaparicados
etnocentricamente pelo sistema discriminatório, em que os «normais» privilegiam
os «normais».
Serve
esta reflexão para ajudar a magnificar algo que concretiza um ponto de viragem
fundamental e de grande dignidade antropológica, ética e política e que é a
presença de atletas especialmente diferenciados na selecção para o Prémio do Melhor Atleta do Ano, relativo
a 2018, promovido pela Confederação do Desporto de Portugal.
O
facto de se pôr debaixo de uma única designação antropológica universal – agora
– todos os atletas, independentemente da sua especial diferença, constitui um
marco cultural e civilizacional do mais elevado mérito humano, cumpridor da
Carta dos Direitos Humanos.
No
desporto, como no mais da vida humana, em termos de mérito pessoal, o que
interessa são os actos que cada um fez, que cada um é. O mais é especulativo,
quiçá, preconceituoso.
No
caso vertente, é o palmarés objectivo que deve contar e, a partir dele, ser
feito o juízo acerca de quem foram os melhores, realmente, sem preconceitos ou
má-fé.
O
grande Atleta nadador João Vaz, ser humano portador de trissomia vinte e um,
foi este ano incluído na lista dos possíveis melhores. Foi-o objectivamente:
não porque pertence a quotas, não porque é visto de modo especial, mas porque
se integra na normalidade do que deve
ser a triagem e eleição normal de todos os seres humanos – identicamente humanos
– em qualquer âmbito da acção humana.
Parabéns
ao João; mas, sobretudo, parabéns a quem conseguiu pessoal e institucionalmente
evoluir para um patamar de inteligência em que formal e materialmente se supera
tudo o que são atavismos etnocêntricos aniquiladores da objectiva dignidade
humana.
Está
também Portugal de parabéns. Encetado o caminho, agora há que não vacilar e não
retroceder, sobretudo em tempos em que as velhas estruturas etnocêntricas estão
a reganhar terreno.
Janeiro
de 2019
Américo
Pereira
FCH/UCP
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