domingo, 26 de maio de 2019

A propósito de um campeão

Os falhados
Talvez nunca como hoje as questões ligadas à definição ontológica do que é um ser humano, uma pessoa, foram tão relevantes, numa altura da história em que, após mais de trinta séculos de transição de um estado de definição antropológica baseado em primitivas categorias etnocêntricas – que sempre reduzem a dignidade ontológica do diferente –, a um estado de consciência antropológica, ética e política de uma comum humanidade universalmente verificável, se caminha perigosamente em sentido inverso.
Após a maior vergonha antropológica da história da humanidade constituída pelo massacre de dezenas de milhão de pessoas aquando da Segunda Guerra Mundial, muitos destes milhões apenas porque foram considerados desconformes a formas precisamente etnocêntricas, outros apenas porque estavam no sítio em que os senhores da guerra localizaram esta, após se ter erigido a Declaração Universal dos Direitos do Homem, logo após tal matança, a mesma humanidade parece ter enveredado por um caminho de regresso à estupidez primitivista que está na base de todas as discriminações antropológicas, de todas as formas de denegação da dignidade humana de uns seres humanos por outros, de toda as formas de escravização.
Interroga-se: tanto sofrimento para quê? Tanto trabalho de esclarecimento lógico-racional para quê? Para que uns quantos arautos de uma redescida aos infernos da irracionalidade triunfem, fazendo a humanidade regressar a tempos de antes das grandes denúncias antropológicas da tiranização de uns por outros?
Com a animalização biologista da humanidade e a igualização entre a besta – por simpática que seja – e o ser humano; com o renovado triunfo dos movimentos promotores da tirania, encorajados pela transferência maciça da riqueza para o oriente de tradição esclavagista de que nunca prescindiu e que sabe disfarçar muito bem, até com teorias que justificam engenhosa e requintadamente todas as formas de submissão ao tirano; com o renovar da tradição depredatória ocidental, em que, de facto, o ser humano é lobo do ser humano; com todos estes movimentos lançando para a sargeta da história os que não podem ou não querem fazer parte de um tal mundo, impiedosamente tratando tudo o que considera fraco ou simplesmente desconsidera porque elege como não-querido, de que o exemplo maior foi Adolf Hitler, a humanidade encaminha-se para um abismo de bestialidade antropológica ou de puro e simples caos.
O universo humano substituído por um universo mecânico mais poderoso do que o seu criador humano começa a apresentar-se como alternativa, como se pode perceber pelas figuras criadas por um George Lucas, que chega a trocar o pessoal médico por máquinas, em Guerra das Estrelas; por um Spielberg, que cria um menino mecânico mais propriamente humano do que os seres humanos que o construíram, em Inteligência Artificial; pelos irmãos Wachowski, na sua antropologicamente muito significativa epopeia antropo-mecânica Matrix. Todas estas são obras consumidas cumulativamente por centenas de milhão de pessoas.
É um tempo em que a definição de humanidade está em causa, logo após uma raríssima parte da humanidade possidente ter posto em forma escrita, que deveria ser Lei, mas que não passa de um papel ignorado, uma Declaração que supõe uma definição antropológica capaz de obviar a todos estes movimentos de irracionalização, de indignificação onto-antropológica da humanidade.
Mas que é isso da humanidade? O que é ser-se um ser humano?
Nenhuma definição pode já ser aceite como boa universalmente, tal a qualidade perversa do trabalho de sapa que foi feito precisamente para impedir tal definição universal.
A única resposta universalizável, mesmo para e com as mais irredutivelmente perversas pessoas – sempre pessoas – é esta: o ser humano é isso que vês quando te olhas ao espelho. Isso que faz de ti isso que vês ao espelho é estruturalmente o mesmo em e para todos os seres que também assim se vêem ao espelho e que tu podes ver como são, se te dignares olhar para eles como te dignas olhar para ti, ao espelho.
Ainda assim, e por causa da perversidade do olhar, perversidade que não é possível eliminar sem que se elimine quem assim olha – precisamente o ponto aqui em causa –, esta definição claudica: que vê um Hitler quando olha um «indesejado»? Um semelhante à sua imagem especular? Claramente não.
Mas e não há um hitlerzinho potencial em cada olhar de cada um de nós? Em mim, há, bem o sei. E eu sei que não sou diferente senão em grau dos demais, porque eu já me vi ao espelho e já olhei e olho os outros como eles são, não como eu os quero ver. É uma boa experiência: morta a vaidade, é não só não-dolorosa, como absolutamente deliciosa. Que bom é ver no outro não a besta semelhante a mim, mas a pessoa semelhante a mim.
O campeão
Por isso gosto muito de olhar para o meu atleta favorito, o meu Amigo João, o campeão que já ganhou dezenas e dezenas de troféus. O homem que é capaz de nadar mil e quinhentos metros em estilo mariposa, quando o máximo que já consegui nadar nesta especialidade foi vinte e cinco metros. Se empregarmos uma perversa antropologia métrica, o João é sessenta vezes melhor do que eu a nadar em estilo mariposa. Nisto das comparações antropológicas, tão em voga, pobre de mim.
Como nunca ganhei qualquer medalha em qualquer desporto e a diferença entre nada e muitas dezenas é infinita, o João é infinitamente melhor do que eu a ganhar medalhas desportivas. Estou mal.
Mas posso recuperar: eu sou um filho razoável e o João é um bom filho. Já estou mais próximo. O João gosta muito de raparigas e eu também sempre gostei. Consegui um empate. O João é bom no que faz na escola e eu também por aí ando. Outro empate.
O João, com tanto exercício, é de uma elegância imbatível; eu tenho a barriga burguesa que se espera de um homem com 52 anos e sedentário. Já estou de novo a perder. Comparar seres humanos é ingrato. Na comparação, perde-se sempre algo, ao relativizar-se o que é absoluto na pessoa a uma outra pessoa, assim as relativizando a ambas. É um processo destruidor do que há de absoluto em cada ser humano, algo que nunca deve ser relativizado.
As pessoas são o absoluto de isso que surge no espelho invocado algumas linhas acima (não confundir com o reflexo). E, ou cada pessoa percebe tal e é, assim, possível construir uma humanidade real de reais pessoas, ou não percebe e está a humanidade condenada ou à bestialização ou à erradicação.
O João, na sua grandeza ontológica própria de pessoa, todos os «João» – e todas as «Joanas» (o João tem mesmo uma irmã chamada Joana e muito se amam) –, os Pais de todos os «João», todos os que nos servem de exemplo, mas também todos os outros, porque o João é a humanidade numa pessoa, como cada um de nós é a humanidade numa pessoa, são para ser contemplados no que são e, nisso, amados.
Esqueço-me de um pormenor, agora irrelevante: o João, o João Vaz tem Trissomia 21. E eu sinto-me profundamente humilde perante tão grande humanidade nele.
Outubro de 2016
Américo Pereira


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