João Vaz, campeão dos campeões
As deficiências estão dentro do livro da história e as alterações genéticas estendem-se a quase todas as espécies, ocasionando a morte dos mais fracos por selecção natural. Há contudo uma espécie com indivíduos fortes e fracos, mas em que quase todos estão dotados de compaixão, uma capacidade que, de certo modo, segurou as garras do darwinismo. Esta é a história de João Vaz, portador de trissomia 21 no século XXI e vencedor de mais de 200 medalhas
POR PEDRO COTRIM
«Volenti nihil difficile»
O João vai fazer 29 anos daqui a duas semanas. É um portador de trissomia 21 no século XXI, era de antecipação da antecipação dos costumes que aleija com dores de crescimento os ainda não incluídos na agenda política.
Nesta era tudo melhorou grandemente em relação às pessoas afectadas por deficiências, mas há muito percurso por diante. É mais fácil ser portador de deficiência agora que há cem anos, mas este juramento genético dura a vida inteira. Quem jura diz a verdade, merecendo por isso ouvir também toda a verdade. Conforme se brincava no Técnico, bastava dizer com sotaque brasileiro «engenharia civil não é fácil, edifício» para se perceber os engulhos do curso. Viver com uma deficiência é uma corrida com muitos obstáculos e isto pode ser jurado por quem de uma padece.
As deficiências estão dentro do livro da história e as alterações genéticas estendem-se a quase todas as espécies, ocasionando a morte dos mais fracos por selecção natural. Há contudo uma espécie com indivíduos fortes e fracos, mas em que quase todos estão dotados de compaixão, uma capacidade que, de certo modo, segurou as garras do darwinismo. O indivíduos da espécie humana são por isso afortunados e não apenas peões do destino.
Numa década o João conquistou mais de duzentas medalhas. Apenas não conquistou títulos olímpicos porque quem sofre de trissomia 21 está impedido de participar nos Jogos Paralímpicos. Há petições para esta mudança e são fáceis de encontrar. Enquanto o João não vai aos Jogos, trazemos os jogos do João para aqui com uma breve apresentação.
O João Vaz nasceu no dia 22 de Dezembro de 1992 em Lisboa. Fez o seu percurso escolar e em 2011 ingressou no Centro de Transição para a Vida Adulta da CERCI Lisboa onde, a par da sua actividade desportiva, participa ainda em diversos projectos com vista ao desenvolvimento das suas competências pessoais e sociais.
Demonstrou desde criança grande propensão para a água, o que levou os pais a procurarem aulas de adaptação ao meio aquático por questões da sua própria segurança. Embora houvesse esta inclinação para a prática da natação, ocorrências da vida acabaram por adiar o início desta modalidade desportiva.
A aprendizagem técnica de natação teve início aos 16 anos com o treinador Alexandre Ferreira na Piscina da Portela, tendo o João entrado para a equipa de Natação Adaptada do Sporting Clube de Portugal em Abril de 2009. Esta equipa dava as primeiras braçadas na competição com o treinador Rui Gama, que, acreditando que era possível atingir patamares de excelência na integração e desenvolvimento de pessoas com deficiência e multideficiência através da competição desportiva, se entregou com entusiasmo ao projecto.
A primeira competição oficial do João ocorreu em Dezembro de 2009, no Festival de Natação organizado pela Associação Nacional de Desporto para Desenvolvimento Intelectual (ANDDI), em Sesimbra. Participou pela primeira vez num Campeonato Nacional de Natação Adaptada no dia 5 de Fevereiro de 2010, em Lamego, tendo aí conquistado as suas primeiras medalhas, uma de ouro e outra de prata.
Foi evoluindo na técnica e revelou muita competitividade, que o conduziu à conquista de vários títulos nacionais e internacionais. O primeiro Título de Campeão da Europa foi alcançado em 2011 no 1º Campeonato da Europa, organizado pela ANDDI em Coimbra, sob a égide da Down Syndrome International Swimming Organization (DSISO), na prova dos 25 metros bruços. O primeiro recorde nacional foi obtido ainda em 2011 nos 25 metros mariposa. Em 2013 entrou no clube restrito dos atletas de alta competição, sendo contratado pela Federação Portuguesa de Natação como corolário das suas prestações a nível internacional. Tem-se mantido desde 2015 o número 1 do ranking nacional na classe S21.
Embora muito tenha melhorado no âmbito da integração e da igualdade de oportunidades na área do desporto de competição, muito está ainda por fazer. Apesar dos discursos políticos para agradar, continuam a existir barreiras que impedem o tratamento justo e igualitário de todos os atletas. Impedir aos portadores de Trissomia 21 a participação nos Jogos Paralímpicos impossibilita-os de receber os prémios pecuniários pelas medalhas conquistadas e de aceder às bolsas atribuídas a todos os atletas incluídos no programa olímpico e paralímpico.
Esta desigualdade é um dos principais entraves ao crescimento do interesse e participação de um maior número de jovens com T21 na natação de competição, uma vez que esta modalidade implica disponibilidade temporal e financeira das famílias por forma a fazer face aos elevados custos inerentes à participação e à preparação dos atletas. O desporto, sendo reconhecidamente muito benéfico, talvez seja ainda mais essencial para quem sofre de algumas deficiências.
É uma dificuldade a jusante, pois a montante as coisas vão sendo feitas, com educação inclusiva e/ou especial e dedicada. Está quase tudo bem até ao final da escola, mas a inclusão no mercado de trabalho é uma complicação ainda maior que a desportiva.
Encara-se o trabalho de uma pessoa com deficiência como uma espécie de ATL. São os pais ou encarregados quem paga muitas vezes o trabalho, e não o trabalhador a receber o salário. Há obviamente vários tipos e graus de deficiência e muitos cidadãos com deficiência desempenham as funções do seu posto de trabalho quase tão bem como um afortunado cidadão sem deficiência, sendo por isso atroz pensar nesta possibilidade. Mas vale a pena esta reflexão, pois é uma situação corriqueira no nosso país.
Numa época de inclusão, em que se torce a linguagem para abranger todos, pense-se um pouco nestas pessoas. Os pesadelos da eutanásia grupal ficaram no século XX, mas não se pode condenar um cidadão com deficiência a uma vida sem sentido e sem retribuições.